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Ataxias - anatomia e fisiologia do cerebelo

Atualizado: 18 de out. de 2023

Introdução


O termo "ataxia" deriva etimologicamente do idioma grego, no qual o prefixo 'a-' denota "ausência" ou "negação" e o sufixo '-táxis' implica "ordem". Portanto, ataxia simboliza uma "ausência de ordem ou coordenação", e deve ser interpretada não como uma patologia isolada, mas como um sintoma neurológico.

De fato, segundo Anita Harding (1996), grande estudiosa das ataxias hereditárias, a ataxia se refere a uma "decomposição do ajuste fino da postura e dos movimentos, normalmente controlados pelo cerebelo e suas conexões, aplicando-se à função motora dos membros, tronco, olhos e musculatura bulbar".

É imperativo notar que a ataxia pode ser atribuída à disfunção de múltiplos sistemas. Os sistemas cerebelar, proprioceptivo e, ou vestibular comumente figuram como os principais geradores desse sintoma. Incumbe ao neurologista, com precisão diagnóstica, diferenciar a topografia da lesão com base em dados anamnésicos e achados no exame físico. O presente capítulo tem o intuito de introduzir este tema complexo por meio de uma abordagem simplificada, ancorada em princípios de neuroanatomia e semiótica.


ANATOMIA E FISIOLOGIA DA COORDENAÇÃO MOTORA E CIRCUITOS CEREBELARES


Função cerebelar


A função cerebelar ocupa um papel crucial na fisiologia do controle motor, desempenhando a intricada tarefa de comparar intenções com ações e, em consequência, gerar sinais corretivos para aprimorar o funcionamento do sistema motor. O cerebelo contribui de forma significativa para a aprendizagem motora e para a adaptação de comportamentos motores, atuando na automatização e na otimização da cinética muscular. Além dessas funções primariamente motoras, existem evidências que apontam para a implicação do cerebelo em funções cognitivas não motoras.

Nesse contexto, o cerebelo executa sua função comparativa confrontando os sinais de planejamento motor originados no córtex motor com os sinais sensoriais somáticos aferentes, provenientes tanto da medula espinhal quanto do sistema nervoso periférico. Esta integração ocorre em um circuito de retroalimentação com áreas motoras associativas, incluindo os córtices pré-motor e motor suplementar, proporcionando refinamento aos programas motores ali originados.

Numerosos autores postulam que uma outra função fundamental do cerebelo é a promoção de movimentos sinérgicos, coordenados e fluentes, realizada através do ajuste preciso do "timing" de ativação entre músculos agonistas e antagonistas.

Lesões cerebelares, consequentemente, resultam em uma gama de disfunções que incluem incoordenação e erros que não são atribuíveis a fraqueza muscular. Além disso, essas lesões comprometem a habilidade de antecipar e corrigir erros, sejam eles de alvo ou de trajetória motora.


Divisão anatômica e funcional do cerebelo


Anatomicamente, o cerebelo é subdividido em três lobos distintos: o lobo anterior, o lobo posterior e o lobo flóculo-nodular. A fissura primária demarca a separação entre os lobos anterior e posterior, enquanto a fissura postero-lateral distingue os lobos posterior e flóculo-nodular. Adicionalmente, o cerebelo é composto por dois hemisférios cerebelares simétricos e pela região vermiana, situada na linha média. Essa segmentação anatômica não necessariamente espelha as funcionalidades cerebelares, o que levou à proposição de uma classificação funcional fundamentada em critérios filogenéticos e nas conexões do córtex cerebelar com os núcleos profundos.


Comumente referido como a "árvore da vida" devido à sua morfologia em cortes seccionais, o cerebelo apresenta um córtex altamente sulcado, formando as estruturas conhecidas como folias. Embora represente somente cerca de 10% da massa encefálica total, ele abriga aproximadamente 50% de todos os neurônios do encéfalo.


Do ponto de vista funcional, o cerebelo é categorizado em três subdivisões: (1) cerebrocerebelo, (2) espinocerebelo e (3) vestibulocerebelo.


O cerebrocerebelo, correlacionado predominantemente ao planejamento motor, é localizado nas porções laterais dos hemisférios cerebelares. Esta região é primordial para a coordenação de movimentos de membros independentes, particularmente aqueles que requerem maior destreza, e desempenha um papel significativo no controle de movimentos pré-programados.


O espinocerebelo é responsável pelo controle motor envolvendo a coordenação dos membros proximais e a postura do tronco. Esta subdivisão funcional abrange a região vermiana e as porções intermediárias dos hemisférios cerebelares, compartilhando, em certa medida, com o cerebrocerebelo a função de ajuste de movimentos em execução.


O vestibulocerebelo, situado no lobo flóculo-nodular, assume a função de controle dos movimentos óculo-cefálicos e da manutenção do equilíbrio.


Filogeneticamente, a subdivisão vestibulocerebelar (arquicerebelo) é a mais antiga, seguida pelo espinocerebelo (paleocerebelo), identificado inicialmente em anfíbios. O cerebrocerebelo (neocerebelo) representa a região funcional mais recentemente evoluída, com sua emergência registrada em mamíferos.



Figura - Divisões anatômicas e funcionais do cerebelo


Conexão do córtex cerebelar e núcleos profundos


A organização neural do cerebelo engloba uma complexa rede de interconexões que envolve uma camada cortical de substância cinzenta e um centro profundo de substância branca. Adicionalmente, cada hemisfério cerebelar abriga quatro núcleos profundos de substância cinzenta, estabelecendo distintas trajetórias de comunicação neural.

O córtex da região vermiana estabelece conexões funcionais com os núcleos fastigiais, projetando-se em direção ao sistema ventro-medial, que inclui os núcleos vestibulares e a formação reticular. Este segmento cortical recebe aferências de diversas modalidades sensoriais, incluindo vestibulares, somatossensoriais proximais, bem como aferências auditivas e visuais.

Por sua vez, o córtex da região paravermiana (ou intermédia) estabelece conexões com os núcleos interpostos, compostos pelos núcleos emboliforme e globoso. A eferência deste segmento cortical é direcionada ao sistema lateral, especificamente ao núcleo rubro contralateral. As aferências deste setor são notavelmente semelhantes às da região vermiana.

A porção lateral dos hemisférios cerebelares contém o córtex que estabelece uma via de saída através dos núcleos denteados. Esta via eferente é canalizada para as áreas motoras frontais via pedúnculo cerebelar superior, passando pelo núcleo rubro e pelo núcleo ventrolateral do tálamo. O trato aferente deste segmento se origina no córtex cerebral e transita pelos núcleos pontinos, configurando o trajeto cortico-ponto-cerebelar.

O lobo flóculo-nodular do vestibulocerebelo projeta diretamente aos núcleos vestibulares, exercendo influência sobre o trato vestibulo-espinhal. Além disso, este lobo estabelece conexões com neurônios reticuloespinhais, destacando sua extensa interconexão com a via ventro-medial.

Assim, o cerebelo demonstra uma arquitetura neural altamente especializada, permitindo uma complexa modulação das funções motoras e sensoriais, refletida em sua diversificada conectividade com distintas regiões encefálicas.



Figura 5.2 - Papel do cerebrocerebelo no planejamento e programação do movimento e do espinocerebelo na comparação entre intenção e ação a partir do feedback sensorial



Pedúnculos cerebelares


Os pedúnculos cerebelares consistem em três feixes distintos de fibras neurais: o pedúnculo cerebelar superior (também conhecido como braço conjuntivo), o médio (braço da ponte) e o inferior (corpo restiforme). Estas estruturas são essenciais para a condução de informações aferentes e eferentes, geralmente em uma disposição ipsilateral. Enquanto as aferências primordialmente circulam através dos pedúnculos cerebelares médio e inferior, as eferências costumam ser também ipsilaterais ao lado do corpo que estão modulando. É relevante destacar que, mesmo envolvendo o núcleo rubro contralateral, o trato rubroespinhal cruza imediatamente a linha média após sua origem no núcleo.

O cerebelo recebe aferências salientes predominantemente de três fontes neurais: tratos espinocerebelares, fibras pontocerebelares e fibras olivocerebelares.


Microcircuitos e Histologia Cerebelar


A organização microestrutural do cerebelo apresenta uma arquitetura celular e histológica altamente repetitiva. Seu córtex se organiza em três camadas distintas, dispostas do exterior para o interior como segue: (a) camada molecular, (b) camada de células de Purkinje e (c) camada granular.

Na camada molecular, posicionada imediatamente subjacente à pia-máter, estão situadas as elaboradas arborizações dendríticas das células de Purkinje, além de dois grupos específicos de interneurônios: as células em cesto e as células estreladas. Axônios não mielinizados, conhecidos como fibras paralelas e originários da camada granular, também povoam esta região.

A camada de células de Purkinje é caracterizada por um conjunto de células somáticas de grande porte, com morfologia piriforme, responsáveis pela principal via eferente do cerebelo. Estas células possuem axônios que projetam exclusivamente para os núcleos profundos cerebelares e exercem uma função inibitória.

A camada granular aloja células granulares de menor porte, as células de Golgi tipo II e estruturas chamadas glomérulos, que são pontos de encontro sináptico entre axônios aferentes e células granulares.


Fibras Musgosas e Trepadeiras


As fibras musgosas, originárias de diversas estruturas como núcleos pontinos, medula espinhal, formação reticular e núcleos vestibulares, realizam sinapses com as células granulares em uma conformação de tufo. Estas fibras são predominantemente excitatórias e podem estabelecer conexões com centenas de células granulares.

As fibras trepadeiras, por outro lado, emanam exclusivamente dos núcleos olivares inferiores e projetam-se para as células de Purkinje e os núcleos profundos cerebelares. Estas fibras ascendem e envolvem os dendritos das células de Purkinje de forma similar a uma trepadeira. Curiosamente, cada célula de Purkinje é inervada por apenas uma fibra trepadeira, que pode realizar até 300 sinapses por célula. O papel destas fibras parece estar intrinsecamente ligado à aprendizagem motora.


Figura 5.3 - Fluxograma de aferência e eferência cerebelares, e suas relações com os núcleos profundos e pedúnculos cerebelares.


VASCULARIZAÇÃO ARTERIAL DO CEREBELO


O cerebelo recebe irrigação arterial de três artérias, descritas abaixo:


1. artéria cerebelar superior


De origem próxima ao topo da basilar, tem trajeto inferior ao nervo oculomotor, e ao redor do pedúnculo cerebral, de onde chega à superfície superior do cerebelo. Supre tipicamente toda a superfície superior dos hemisférios cerebelares, até a fissura horizontal, o verme superior, núcleo denteado, boa parte da substância branca cerebelar e parte do mesencéfalo.


2. artéria cerebelar anterior inferior


De origem na artéria basilar, na transição bulbo-pontina, dá origem à artéria labiríntica, e tem um curso variável, as vezes se anastomosando a outra artérias. O tecido irrigado por esta artéria varia, porém geralmente inclui o pedúnculo cerebelar médio, a porção infero-lateral da ponte, o flóculo, e a superfície anterior e inferior do cerebelo. Também dá origem à artéria labiríntica, que irriga o ouvido interno.


3. artéria cerebelar posterior inferior


É uma das artérias mais variáveis em curso e origem, além de tipicamente tortuosa. Sua origem habitual é nas artérias vertebrais, porém também pode advir de localização extracraniana, da basilar, ou ser ausente. Seu território de suprimento, por este motivo, também é variável, e pode incluir, as tonsilas cerebelares, os lóbulos biventrais, o núcleo grácil (no bulbo), o lóbulo semilunar superior, a porção inferior do verme e o bulbo caudal.



 
 

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