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Foto do escritorGrupo de Estudos em Transtornos do Movimento

Tiques e síndrome de Tourette

Introdução


A síndrome de Tourette há muitos anos é considerada uma “desordem neuropsiquiátrica modelo”. Essa afirmação se justifica devido a algumas características: (1) uma forte base genética/hereditária; (2) distribuição entre os gêneros e a idade de início características, que sugerem influência de processos do neuro-desenvolvimento ou mesmo hormonais; (3) o papel de fatores epigenéticos e ambientais; (4) a apresentação clínica, devido à grande predominância de manifestações comportamentais; (5) a resposta a antagonistas e depletores de dopamina, que localiza o problema nos gânglios da base.

Este capítulo busca apresentar as principais teorias relacionadas à gênese dos tiques e introduzir ao leitor os aspectos diagnósticos, história natural, epidemiologia, etiologia, genética e tratamento. Ênfase será dada à relação estreita entre a síndrome de Tourette e suas co-morbidades (como o transtorno obsessivo-compulsivo e o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade).





Histórico


A primeira descrição da síndrome talvez tenha sido feita ainda no século XV, na Idade Média, no livro “Malleus Maleficarum”, de Jakob Spenger e Heinrich Kraemer, em que é descrito o caso de um padre com tiques “de origem em uma possessão demoníaca”.

O nome da síndrome é uma homenagem ao neurologista francês Georges Gilles de la Tourette (1857-1904) que, sob a orientação de Jean-Martin Charcot, diretor do Hospital Salpetrière de Paris, fez a primeira descrição da doença, em 1885, no manuscrito “Study of a Nervous Affliction”, com relato detalhado dos sintomas de nove pacientes. A mais famosa paciente de Tourette foi a Marquesa de Dampierre, inicialmente examinada por Jean Marc Gaspard Itard, também médico francês. A Marquesa ficou muito conhecida, em sua época, devido aos episódios de coprolalia, que contrastavam enormemente com sua “classe social, intelecto e maneiras refinadas”, e que se iniciaram na infância, aos 7 anos, e a acompanharam até os 80 anos.

A possibilidade de haver uma origem orgânica para a síndrome de Tourette passou a ser considerada a partir do século XX, após a epidemia de encefalite dos anos 1918-1926, que foi sucedida por uma epidemia de doenças associadas a tiques. Até então, a principal hipótese era de que os tiques resultavam de distúrbios psicológicos ou conflitos psicossexuais, sendo considerada a psicoanálise a intervenção terapêutica mais utilizada, até a década de 1970.

No entanto, Arthur K. Shapiro, médico nova-iorquino, começou a tratar pacientes com Tourette com haloperidol em 1965, provocando uma grande mudança no tratamento da doença. A partir daí, a doença passa a ser considerada como de origem neurológica.

Em 1972 foi criada a National Tourette Syndrome Association, e, na própria década de 70 foram iniciados os tratamentos com a terapia de reversão de hábitos. Em 1984 foi aprovado pelo FDA o uso da pimozida como tratamento farmacológico. A partir dos anos 2000, a associação com os genes SLITRK1 e HDC foi descrita e os primeiros estudos de tratamento intervencionista neurocirúrgico.


Conceitos básicos


Tiques


Tiques são definidos como movimentos ou vocalizações rápidos, súbitos, recorrentes, não rítmicos, estereotipados e são caracterizados por sua localização anatômica, frequência, intensidade e “complexidade".


Fenômeno premonitório

Trata-se de uma urgência sensorial que precede a manifestação do tique, descrita frequentemente pelos pacientes como uma angústia inespecífica, que os leva a realizar o movimento.


Tiques Simples


São movimentos ou sons breves, circunscritos que se assemelham a fragmentos de um comportamento motor, e incluem fenômenos como: piscamentos, contrações faciais, movimentos da boca, abalos cefálicos, elevação dos ombros, rápidos abalos nos membros superiores ou inferiores.


Tiques Complexos


São movimentos mais elaborados, com ações mais sustentadas, com palavras por vezes semanticamente reconhecíveis, que podem dar a aparência de um evento volicional, intencional. Exemplos incluem gestos semelhantes a pentear o cabelo, combinados com outros movimentos despropositados cervico-cefálicos.


Diagnóstico diferencial


É importante diferenciar o tique de outros fenômenos clínicos, como distonia e coréia (as vezes não tão fáceis de diferenciar), estereotipias, compulsões (de caráter ritualístico) e de comportamentos repetitivos (manias).


História natural da doença


O curso clínico da síndrome de Tourette é bem conhecido e descrito na literatura médica. Os tiques costumam surgir na infância, entre os 4 e 6 anos de idade, e aumentar em frequência e intensidade, alcançando um pico ao redor dos 10-12 anos. Em geral, os tiques motores precedem os tiques vocais, e os tiques simples precedem os tiques complexos. Parece haver uma tendência a evolução rostro-caudal dos tiques.

Na adolescência, há uma tendência natural à redução da gravidade dos tiques, de modo que, quando o paciente atinge a idade de um adulto jovem, a maioria dos indivíduos já obteve uma redução marcada no número de tiques ou mesmo estão livres dessa manifestação.

O início das co-morbidades psiquiátricas, especialmente o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, pode preceder, ser concomitante ou posterior ao início dos tiques. Em alguns casos, segue uma evolução similar aos tiques, porém, em outros pacientes, algumas manifestações como distúrbios de humor e comportamento auto-agressivo pode persistir ou mesmo piorar na idade adulta, independentemente da evolução dos tiques.

Há uma grande flutuação na gravidade, frequência e número de tiques durante a doença. Os tiques podem persistir durante o sono. Fatores como estresse e ansiedade podem exacerbá-los.


Fisiopatologia


Não há, até o momento, consenso sobre quais alterações neuroquímicas e anatômicas se relacionam à doença. Há descrições, de estudos anatomopatológicos, de redução de interneurônios GABAérgicos e colinérgicos de disparo rápido nos núcleos caudado e putâmen e um descompasso no número de neurônios GABAérgicos positivos para parvalbumina, que estão diminuídos no globo pálido externo, e aumentados no globo pálido interno, sugerindo um possível defeito de migração neuronal nos circuitos dos gânglios da base.

Estudos de imagem têm resultados conflitantes, mostrando redução volumétrica dos caudados e do córtex sensoriomotor, além de aumento de volume dos tálamos, hipocampos e amígdala.

Em suma, pacientes com o distúrbio parecem exibir uma hipoatividade nos núcleos da base associada a uma hiperatividade em área motoras e pré-motoras. Isto levaria ou seria causado por distúrbios funcionais na via afetiva cortico-estriado-tálamo-cortical, com especial importância do envolvimento de vias dopaminérgicas, como a nigro-estriatal e mesolímbica, dada a resposta clínica com o tratamento com antagonistas de receptor D2 de dopamina (como haloperidol e pimozida) ou depletores de dopamina, como a tetrabenazina.


Diagnóstico



Síndrome de Gilles de la Tourette

Não há exame de imagem ou teste laboratorial que confirme a doença, sendo o diagnóstico realizado exclusivamente pelo método clínico.


Critérios diagnósticos

São conhecidos 2 critérios diagnósticos principais: o do Manual de Diagnóstico e Estatística da Academia Americana de Psiquiatria (DSM) e o do Grupo de Estudo sobre a Classificação da Síndrome de Tourette.

Os critérios do DSM-V levam em consideração a presença de tiques motores e vocais com duração maior que 1 ano, com início antes dos 18 anos de idade. Os Critérios do Tourette Syndrome Classification Study Group consideram, por sua vez, as seguinte características: (1) presença de múltiplos tiques motores e um ou mais tiques fônicos devem esta presentes em algum momento durante a doença, porém não necessariamente simultâneos; (2) os tiques devem ocorrer várias vezes ao dia, quase todo dia, ou intermitentemente por um período maior que um ano; (3) a localização anatômica, o número, frequência, tipo, complexidade e gravidade dos tiques deve mudar com o tempo; (4) o início dos tiques deve se dar antes dos 21 anos de idade; (5) os movimentos involuntários e vocalizações não podem ser explicados por outra condição médica; (6) os tiques motores ou fônicos devem ser testemunhados por um examinador confiável em algum ponto da doença, ou gravado em vídeo.


Genética


A importância da história familiar na doença é nítida, sendo em vários casos frequente a herança de ambos os pais (também chamada de herança bilineal). Genes como SLITRK1, que parece estar relacionado à funções de brotamento dendrítico, localizado no cromossoma 13q31.1 têm sido relacionado à doença. Outros genes, como o gene HDC, no cromossoma 15q21-q22, identificado em duas famílias com Tourette de herança possivelmente autossômica dominante, tem recentemente ganhado importância em nível de pesquisa.


Fatores ambientais


Em 1988, Swedo e colaboradores publicaram teoria que correlacionou a sindrome de Tourette com a doença auto-imune pós-estreptocócica PANDAS, devido a exacerbação abrupta dos sintomas de crianças com TOC ou tiques após infecção pelo estreptococco. Essa associação, no entanto, não tem sido replicada em estudos posteriores.


Quantificação clínica


James Leckman e colaboradores publicaram em 1989 a Yale Global Tic Severity Scale (YGTSS), uma escala bastante reprodutível de quantificação da gravidade dos tiques motores ou fônicos, após coletar dados de cerca de 105 pacientes, com idade de 5 a 51 anos. Na escala, o clínico deve levar em consideração os tiques ocorridos na semana anterior à avaliação, e o quanto estas manifestações interferem no cotidiano do paciente. Esta é a escala mais utilizada em estudos clínicos com pacientes com Tourette e é facilmente encontrada na internet.



 
 

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