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Coreia de Sydenham: Manifestação Neurológica da Febre Reumática

Introdução


A coreia de Sydenham, também conhecida como dança de São Vitus, representa uma manifestação neurológica maior da febre reumática aguda, constituindo um distúrbio neuropsiquiátrico de origem autoimune. Este distúrbio caracteriza-se por movimentos involuntários, instabilidade emocional e hipotonia muscular, podendo persistir por meses após o episódio inicial. A condição foi primeiramente descrita por Thomas Sydenham em 1686 e permanece como importante critério diagnóstico para febre reumática segundo os Critérios de Jones. O reconhecimento precoce da coreia de Sydenham é fundamental para o estabelecimento de tratamento adequado e prevenção de complicações cardíacas associadas.

A importância clínica desta condição transcende os aspectos neurológicos, uma vez que está intimamente associada ao desenvolvimento de cardite e doença valvar reumática em até 80% dos pacientes afetados. Embora tenha se tornado menos frequente em países desenvolvidos devido ao uso disseminado de antibióticos e melhores condições de higiene, permanece prevalente em países em desenvolvimento. A natureza autoimune da coreia de Sydenham fornece insights valiosos sobre os mecanismos fisiopatológicos de outros distúrbios neuropsiquiátricos pediátricos autoimunes. Compreender seus aspectos epidemiológicos, fisiopatológicos e terapêuticos é essencial para profissionais de saúde que lidam com pacientes pediátricos e adultos jovens.


Epidemiologia


A coreia de Sydenham apresenta distribuição epidemiológica característica, afetando predominantemente crianças e adolescentes entre 5 e 18 anos de idade, com pico de incidência entre 8 e 9 anos. A condição manifesta-se mais frequentemente em pacientes do sexo feminino, com razão de aproximadamente 3:1 em relação ao sexo masculino. Esta predominância feminina sugere possível influência hormonal na patogênese da doença, hipótese corroborada pela ocorrência de coreia gravídica em mulheres com histórico prévio da condição.

A incidência da coreia de Sydenham vem declinando progressivamente nas últimas décadas em países desenvolvidos, particularmente na América do Norte e Europa Ocidental. Este declínio correlaciona-se diretamente com a redução da incidência de febre reumática, atribuída ao uso mais amplo de antibióticos no tratamento de faringites estreptocócicas e melhorias nas condições sanitárias gerais. Aproximadamente 25% dos pacientes com febre reumática desenvolvem coreia de Sydenham, sendo esta uma manifestação maior segundo os Critérios de Jones revisados.

Em contraste, países em desenvolvimento continuam apresentando incidências elevadas da condição, especialmente em regiões com condições socioeconômicas desfavoráveis, superpopulação e acesso limitado a cuidados médicos. A prevalência permanece significativamente maior em comunidades com tratamento inadequado de infecções estreptocócicas do grupo A. O desenvolvimento da coreia de Sydenham típicamente ocorre 6 a 8 semanas após episódio de faringite estreptocócica, não sendo associada a infecções cutâneas por estreptococos. A recorrência da condição pode ocorrer em até 50% dos pacientes, independentemente do uso de profilaxia antibiótica.


Fisiopatologia e Neuropatologia


A fisiopatologia da coreia de Sydenham fundamenta-se em processo autoimune desencadeado por infecção prévia pelo Streptococcus beta-hemolítico do grupo A. O mecanismo primário envolve mimetismo molecular entre antígenos estreptocócicos e componentes neurais dos gânglios da base, levando ao desenvolvimento de anticorpos anti-gânglios da base que reagem cruzadamente com tecidos cerebrais do hospedeiro. Este processo resulta em resposta inflamatória difusa no estriado dorsal, principalmente núcleo caudado e putâmen, bem como no estriado ventral, especialmente o núcleo accumbens.

A reação de hipersensibilidade humoral subsequente causa morte e dano celular nos gânglios da base, estruturas fundamentais para o controle dos movimentos voluntários. O processo inflamatório afeta o equilíbrio entre os sistemas dopaminérgico, colinérgico intraestriatal e inibitório GABAérgico, resultando nas manifestações motoras características da condição. A disfunção do sistema dopaminérgico é particularmente relevante, uma vez que alterações na neurotransmissão dopaminérgica nos gânglios da base são responsáveis pelos movimentos coreicos observados.

Do ponto de vista neuropatológico, estudos post-mortem revelam infiltração inflamatória perivascular, gliose reativa e degeneração neuronal nos gânglios da base. Achados de neuroimagem funcional, incluindo PET e SPECT, demonstram hipermetabolismo e hiperperfusão dos gânglios da base durante a fase aguda, contrastando com outros distúrbios coreicos que tipicamente apresentam hipometabolismo. Estudos de ressonância magnética podem ocasionalmente mostrar hiperintensidade reversível nos gânglios da base, embora achados radiológicos estruturais sejam geralmente normais. A recuperação funcional correlaciona-se com normalização gradual da atividade metabólica cerebral, sugerindo natureza potencialmente reversível das alterações neuropatológicas.


Quadro Clínico e Critérios Diagnósticos


As manifestações clínicas da coreia de Sydenham caracterizam-se pela tríade clássica de movimentos involuntários, fraqueza muscular com hipotonia e alterações comportamentais ou psiquiátricas. Os movimentos involuntários constituem o sinal cardinal da condição, apresentando-se como movimentos abruptos, irregulares e não-estereotipados que afetam tipicamente as quatro extremidades. Estes movimentos podem ser generalizados em aproximadamente 70% dos casos ou hemilaterais em 30-35% dos pacientes, sendo caracteristicamente exacerbados pelo estresse emocional e suprimidos durante o sono.

O "sinal da ordenha" representa manifestação patognomônica da condição, caracterizado por aperto intermitente da mão semelhante ao movimento de ordenha de vacas. Adicionalmente, pacientes podem apresentar disartria em decorrência do envolvimento de músculos bulbares, deterioração da caligrafia (disgrafia), distúrbios da marcha e perda do controle motor fino. Tiques vocais ocorrem em aproximadamente 70% dos pacientes, relacionados à coreia de faringe e laringe, enquanto tiques motores são igualmente comuns.

As manifestações neuropsiquiátricas são frequentes e clinicamente significativas, incluindo ansiedade e depressão em até 77% dos casos. Obsessões e compulsões estão presentes em até 70% dos pacientes, com 16,7% preenchendo critérios para transtorno obsessivo-compulsivo. Hiperatividade e déficit de atenção foram documentados em até 45% dos casos, podendo persistir além da resolução dos sintomas motores. Episódios psicóticos agudos podem ocorrer na fase inicial da doença, requerendo intervenção psiquiátrica especializada. A cardite concomitante desenvolve-se em até 80% dos pacientes com coreia de Sydenham, representando fator de risco significativo para desenvolvimento de doença valvar reumática crônica.

O diagnóstico da coreia de Sydenham baseia-se primariamente em critérios clínicos, constituindo manifestação maior da febre reumática segundo os Critérios de Jones. A aplicação destes critérios requer exclusão de outras causas de coreia através de avaliação abrangente que inclui história clínica detalhada, exame neurológico completo e investigação laboratorial apropriada. A natureza episódica dos movimentos coreicos e sua relação temporal com infecção estreptocócica prévia constituem elementos diagnósticos fundamentais.


Figura. Representação de Pré-adolescente com coreia de Sydenham. Os pacientes com coreia de Sydeham apresentam movimentos coreiformes irregulares de membros superiores e inferiores, postura instável com hipotonia axial e labilidade emocional.
Figura. Representação de Pré-adolescente com coreia de Sydenham. Os pacientes com coreia de Sydeham apresentam movimentos coreiformes irregulares de membros superiores e inferiores, postura instável com hipotonia axial e labilidade emocional.

Exames Complementares

A investigação laboratorial da coreia de Sydenham não dispõe de testes específicos confirmatórios, sendo o diagnóstico estabelecido através da combinação de achados clínicos e exclusão de diagnósticos diferenciais. Os exames sorológicos desempenham papel fundamental, incluindo títulos de antiestreptolisina-O (ASOT) e anti-DNAse B, que podem permanecer elevados por até um ano após faringite estreptocócica do grupo A. Devido à latência entre infecção inicial e desenvolvimento da coreia, reagentes de fase aguda como proteína C-reativa e velocidade de hemossedimentação apresentam utilidade limitada.

A avaliação laboratorial de rotina deve incluir hemograma completo, painel metabólico abrangente, testes de função hepática, dosagem de vitamina B12, hormônio estimulante da tireoide e triagem toxicológica para exclusão de outras etiologias. A deficiência de vitamina B12 pode causar coreia em crianças, justificando sua investigação sistemática. Todos os pacientes com coreia requerem avaliação cardiológica completa, incluindo ecocardiograma para investigação de cardite, considerando a alta prevalência de envolvimento cardíaco concomitante.

Os exames de neuroimagem tipicamente apresentam achados normais na coreia de Sydenham, embora ocasionalmente possam revelar hiperintensidade reversível dos gânglios da base na ressonância magnética. Em crianças, a realização de ressonância magnética deve ser cuidadosamente considerada devido à necessidade de sedação, sendo indicada primariamente quando há suspeita de patologia estrutural ou em casos atípicos. O início agudo de coreia em adultos pode indicar patologia estrutural dos gânglios da base, especialmente no estriado, tornando a neuroimagem fortemente recomendada nestes casos.

Exames funcionais como PET e SPECT podem demonstrar hipermetabolismo e hiperperfusão dos gânglios da base, contrastando com hipometabolismo observado em outros distúrbios coreicos. Estes exames são raramente indicados na prática clínica, sendo utilizados principalmente em contextos de pesquisa. O eletroencefalograma pode apresentar alterações inespecíficas, não contribuindo significativamente para o diagnóstico. A investigação de outros marcadores autoimunes pode ser considerada quando há suspeita de condições como lúpus eritematoso sistêmico com síndrome antifosfolípide.


Tratamento


O manejo terapêutico da coreia de Sydenham compreende três abordagens principais: profilaxia antibiótica, tratamento sintomático dos movimentos involuntários e terapia imunomoduladora para casos refratários. A prevenção primária através do tratamento agressivo de faringites estreptocócicas do grupo A permanece a estratégia mais eficaz para redução da incidência da condição. Uma vez estabelecido o diagnóstico de coreia de Sydenham, a profilaxia antibiótica secundária torna-se imperativa para prevenir recorrências e complicações cardíacas futuras.

A Organização Mundial da Saúde recomenda profilaxia antibiótica secundária para pacientes menores de 21 anos, utilizando penicilina benzatina intramuscular a cada quatro semanas ou penicilina oral diária. A duração da profilaxia deve ser individualizada considerando fatores como idade, presença de cardite e risco de reexposição a infecções estreptocócicas. Pacientes com cardite reumática podem necessitar profilaxia prolongada, potencialmente por toda a vida, dependendo da gravidade do envolvimento valvar.

O tratamento sintomático dos movimentos coreicos permanece controverso devido à escassez de estudos controlados randomizados. O ácido valpróico constitui terapia de primeira linha, iniciado em doses de 250 mg diários com titulação gradual até 1500 mg diários ou até resolução dos sintomas. O início de ação do ácido valpróico é relativamente lento, requerendo pelo menos duas semanas de tratamento antes de considerar ineficácia. Estudos retrospectivos sugerem eficácia significativa desta medicação no controle dos movimentos involuntários.

Para casos refratários ao ácido valpróico, neurolépticos de segunda geração podem ser considerados, particularmente risperidona em doses de 1-2 mg diários. Entretanto, estes medicamentos apresentam risco aumentado de discinesia tardia, requerendo monitoramento cuidadoso. A tetrabenazina, agente depletor de dopamina com perfil de efeitos colaterais potencialmente mais favorável, tem sido sugerida como alternativa, embora sua eficácia não tenha sido bem estabelecida em estudos controlados. Terapias imunomoduladoras, incluindo corticosteroides, imunoglobulina intravenosa e plasmaférese, são geralmente reservadas para casos graves e refratários ao tratamento convencional, apresentando evidências limitadas de eficácia.


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